04.05.2013 às 22h50 - Atualizado em 04.05.2013 às 22h36
Praticantes do candomblé contam como é feita a iniciação das crianças, que desde bebês exercem funções e participam das cerimônias
Por Angélica Fernandes
Rio -
Aos oito meses de idade, Heitor Monteiro Paganini já tocava atabaque no
terreiro de candomblé da sua bisavó de sangue, Edelzuita de Lourdes. As
batucadas não eram por diversão. Mesmo ainda bebê, Heitor exercia um
dos “cargos” mais renomados da religião: o de ogan alagbê (que é o
“chefe” dos tocadores no terreiro). A função não foi escolhida por ele, e
muito menos por sua mãe de santo. O responsável, segundo os
frequentadores do terreiro, foi seu orixá Xangô (Deus da Justiça), que o
consagrou naquela época, para hoje, um ano depois, este virar o grande
dom de Heitor.
“Ele toca junto com os adultos e faz bonito. Acompanha todas as
cantigas no ritmo certo. É a sensação do terreiro. Xangô, com sua
sensibilidade, soube ver exatamente o dom dele”, conta a bisavó de
Heitor, e também sua mãe de santo, Edelzuita D'Oxaguiã, que através do
jogo de búzios interpretou a vontade do orixá em ter Heitor como ogan.
Heitor exerce um dos ‘cargos’ mais renomados da religião: o de ogan alagbê ('chefe' dos tocadores no terreiro) | Foto: Ernesto Carriço / Agência O Dia
Mas para exercer tal função, Heitor precisou da dedicação de toda a
família. Quando uma criança é iniciada no candomblé, ela participa de
cerimônias em homenagem ao orixá para então ficar recolhida num quarto
no terreiro, por dias. “Heitor ficou quase um mês lá. Muitas pessoas da
minha família passaram a morar no barracão porque ele era um bebê
ainda”, contou a mãe dele, Carla Mayara Monteiro e Monteiro, 21.
A experiência vivida por Heitor na sua fase de recolhimento será a
mesma de Ana Clara, 7 anos, Nicole Tina, 7, e Patrik Alan, 11, nos
próximos meses. No terreiro da mãe Meninazinha D’Oxum, em São João de
Meriti, na Baixada, as três crianças, que, no jogo, apareceram
escolhidas por seus orixás, serão iniciadas nos preceitos do candomblé. A
decisão de seguir o caminho é opcional. “Eu quero. Gosto daqui”, conta
Patrik.
Número de candomblecistas diminuiu, segundo Censo
Dados do último Censo do IBGE, em 2010, mostram que há 50.967
candomblecistas no Rio. Em comparação ao penúltimo índice, em 2000,
houve redução de adeptos da religião. Naquele ano, 55.400 pessoas
disseram ser do candomblé. Na umbanda, o dado em 2010 chega a 89.626
pessoas. O número pode estar diminuindo pelo medo que as pessoas sentem
do preconceito.
Tauana dos Santos, 23, vai ter seu primeiro filho em três meses. Ele
nascerá no mesmo meio em que ela nasceu e cresceu: no candomblé. Vítima
de preconceito, Tauana quer tolerância na religião para seu filho. “Vou
deixar ele escolher a fé que quiser. Só vou exigir respeito das
pessoas”, completa.
Nicole Tina, Ana Clara Sales e Patrick Alan serão iniciados nos preceitos do candomblé Foto: Ernesto Carriço / Agência O Dia
Quando foi iniciada no candomblé, na década de 1930, aos nove anos,
Maria do Nascimento, a mãe Meninazinha D’Oxum, hoje com 75 anos, não
imaginaria a legião de filhos de santo que teria. Pelas suas mãos, já
passaram mais de 150 pessoas. Agora está na terceira geração de
seguidores: em breve, ela iniciará sua bisneta Ana Clara.
Para nunca esquecer sua raiz e principalmente sua avó, Iyá Davina, a
quem atribui a responsabilidade por sua adoração à religião, Maria
construiu em seu barracão, na Baixada, um memorial que guarda desde
fotos antigas até artigos de santo. A intenção inicial de fazer uma
homenagem à avó foi além. Hoje, o espaço é fonte de história e o lugar
preferido das crianças no terreiro.
“Elas aprendem a base da nossa religião aqui”, explica Meninazinha, que
trouxe para o memorial elementos de quando Iyá Davina tinha um terreiro
na Bahia. “Guardo até o primeiro ibá (louça que representa o orixá) de
Oxum da minha avó”, conclui.
Preconceito faz muitos jovens esconderem a religião
Quando Nicole Tina da Silva, de 7 anos, resolveu contar na escola que
era candomblecista, perdeu quase todos os seus colegas de turma. “Riam
de mim e falavam que eu era macumbeira, que isso era coisa do demônio”,
relembra. A reação dos colegas a fez mentir em outras ocasiões. “Depois
disso, eu passei a dizer que era católica”, admite, resignada.
O preconceito sofrido por Nicole foi o mesmo das mais de dez crianças
acompanhadas nos últimos 21 anos por Stela Guedes Caputo, atual
coordenadora do Ilê Obá Òyó, programa de pós-graduação em Educação da
Uerj. “As crianças daquela época sofreram a mesma intolerância das
crianças de hoje. Nada mudou”, explica a autora do livro ‘Educação nos
terreiros’, lançado ano passado.
De acordo com Stela, a escola é o ambiente mais cruel do preconceito,
que parte dos alunos e também de professores. “O professor confunde o
público com privado. Sua fé, que é privada e íntima, se mistura com o
espaço público da escola”, aponta Stela. E conclui: “Nossa educação
pública sempre foi marcada por catequese”. Mesmo com a rejeição por parte da sociedade, nenhum dos seus
personagens de estudo abandonou a religião. “Pelo contrário, eles têm
muito amor e dedicação. Mas ainda é uma pena que precisem esconder sua
fé”, lamenta.
Reportagem retirada na íntegra:
Nenhum comentário:
Postar um comentário